quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Em Busca Da Inspiração Perdida - Parte I

Era uma noite como outra qualquer e lá estava eu, esticada em minha cama, as janelas do quarto escancaradas e o ventilador de teto ligado no máximo em uma vã tentativa de espantar o calor ridiculamente excessivo dessa época do ano.

Não conseguia dormir. Olhei no relógio, passava das quatro da manhã.

— Ah. Como eu adoro passar calor — resmunguei enquanto levantava da cama e buscava em minha estante alguma coisa para ler — Hum, poderia ir tomar um banho gelado, talvez isso me fizesse bem — continuei dizendo, talvez para o desenho da Princesa da Babilônia que me espiava da capa do livro do Voltaire jogado em cima do meu criado-mudo, enquanto caminhava em direção à porta.

— Nevermore! — gritou alguma coisa às minhas costas.

Nevermore.

Sim, isso era, afinal, um som muito natural de se ouvir às quatro horas da manhã em meu apartamento.

Ainda se fosse no alto de uma torre sombria, durante uma noite escura, tempestuosa e gelada, ouvindo as ondas do mar chocarem-se com fúria nas pedras lá em baixo e lendo, à luz de uma única e parcialmente derretida vela, Edgar Allan Poe, vá lá.

Mas em uma madrugada de calor infernal no oitavo andar de um prédio amarelo e cor-de-rosa erguido há uns vinte e poucos anos num bairro afastado da cidade de São Paulo?

Sim, muito natural.

Virei-me lentamente, sem saber exatamente se queria ou não saber o que diabos teria gritado “Nevermore!” do beiral da minha janela.

E qual foi o meu espanto, então, ao ver um belíssimo pássaro vermelho e dourado com o rabo de lindas plumas coloridas e um bico curvo de marfim a me observar com olhos negros estranhamente opacos emoldurados por óculos de aro-de-tartaruga empoleirado entre as grades da minha janela.

Não que eu estivesse exatamente esperando um corvo negro caindo aos pedaços pousado em cima de um busto de pedra, mas...

— Nevermore!

Bem, com certeza aquilo deveria ser ainda mais natural.

— Olá — comecei eu, e parei. Ótimo, já estava começando a falar com pássaros bizarros surgidos sabe-se lá de onde empoleirados sabe-se lá por quê no beiral da minha janela.

Eu devia começar a fazer análise.

— Hã! Quê? Ah! Olá! — respondeu o pássaro num pulo, piscando assustado e olhando em volta.

— Ah...

— Oh, puxa, que coisa, dormi no serviço de novo! — exclamou a ave abrindo as enormes asas e se ajeitando novamente — Perdoe-me, cara Carolina, mas, sabe como é, vida de Fênix não anda fácil nesses tempos modernos, a gente anda sempre pra lá e pra cá mandando mensagens e salvando vidas e ninguém acredita que a gente existe de verdade e a gente tem que se explicar e fazer e acontecer e na hora de alguém dizer alguma coisa a respeito nunca dizem “ah, foi a Fênix que me ajudou”, não, é claro que não; é sempre o herói, a princesa, o mago ou qualquer um desses humanos imbecis quem salvou o mundo e merece todas as honras e a Fênix, quem é essa tal Fênix?, esses bichos nem existem de verdade, é tudo de mentirinha, você ainda acredita em conto-de-fadas?, ah, mas que coisa, aí eu fico tão cansada, não tenho tempo nem para comprar umas lentes de contato, e... — parou para tomar fôlego e olhou para mim com olhos lacrimosos — Ah, tudo o que eu queria era poder ser um corvo preto.

Pisquei, aturdida com aquela enxurrada de palavras saídas do bico da tal Fênix.

— Hum — comecei eu. Não tinha tanta certeza de que deveria encorajá-la a falar de novo, a mim parecia ser ela um daqueles tipos de pessoas – ou aves – que preferia monólogos ao invés de diálogos. Em todo o caso, minha curiosidade falou mais alto do que o meu amor pelos meus ouvidos, e continuei — Então você - o senhor - a senhora - estava dormindo...?

— Ah, estava, sim! Viagens longas me deixam por demais cansada, sabe? Vai ver você não reparou porque eu desenvolvi uma técnica – rê rê rê não conta isso pra ninguém se não eu vou acabar demitida – de tirar uns cochilos com os olhos abertos, sabe, coisa bem fácil quando você é uma Fênix maravilhosa como eu e pode fazer praticamente qualquer coisa, mas, então, se descobrirem isso eu posso perder fácil o meu emprego, e... Ah! É! O meu emprego! É claro que eu não vim até aqui à toa, tenho coisas a lhe dizer! Puxa vida, que grande charlatã eu sou!

Ah. Ela tinha coisas a me dizer, então. É claro que tinha. Várias. A questão era, será que eu queria mesmo escutar?

— Eu já estava perdendo o fio da meada, você viu só como eu sou? Desculpa, nem todas as Fênix são assim, é que eu ando meio atarefada, sabe, e—

— Você disse que tinha coisas do seu trabalho a me dizer... — interrompi-a.

— Ah, é verdade! Então — disse, retirando um pedacinho amarelado de papel do meio de suas penas e começando a lê-lo — “Olá, Carol. Venho por meio desta (e espero do fundo do meu coração que esse estrupício penado consiga entregar-lhe esta mensagem...” Ei, eu não sou um estrupício penado! Sou uma grandiosa e imponente fênix, um animal mitológico muito raro e em extinção e...

— Hum, talvez você pudesse me entregar o bilhete...? — tentei.

— É, talvez eu até pudesse, mas acho que estrupícios penados não conseguem sequer entregar bilhetes para as outras pessoas, ou será que conseguem?

— Na verdade eu acho que conseguem, sim.

— Ora! — disse a Fênix, estalando o bico, amarrando a cara e entregando-me de muito mal gosto o tal pedaço de papel amarelado.

“Olá, Carol.

Venho por meio desta (e espero do fundo do meu coração que esse estrupício penado consiga entregar-lhe esta mensagem) avisar-lhe que uma Inspiração de cabelos azuis vestida com roupas coloridas e óculos escuros vermelhos foi encontrada jogada, completamente bêbada, em uma sarjeta da cidade de Roshgrangeon por um guarda decididamente mal-encarado que resolveu trancá-la em uma das duas celas da Nem Tão Grande Assim Prisão Quase Nunca Utilizada de Roshgrangeon. Como soube que sua Inspiração andava desaparecida e as características daquela encontrada assemelham-se muito com as dela, imaginei que talvez você quisesse vir procurá-la. Estou no momento em busca de algumas ervas mágicas na Grande Floresta Verde de Gorgafroom, que faz divisa com Roshgrangeon, qualquer coisa entre em contato.
Fique em paz.

Profeta Zé Apocalipse.”

— É — pensei, ao terminar de ler o bilhete — Acho melhor ir buscar minha toalha.

(Continua, obviamente. Quero dizer, pelo menos eu espero continuar, encontrando minha Inspiração onde o Profeta Zé Apocalipse disse que ela poderia estar.)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Sobre as coisas como elas não são

Ao amanhecer de uma noite ligeiramente ébria estava esta que aqui vos escreve sentada num dos bancos azuis do fundo de um Terminal Capelinha, olhando pela janela sem realmente ver o que se passava por trás do vidro e ouvindo o álbum Division Bell, do Pink Floyd.

Não pensava em nada em específico, só ouvia a música e lutava contra o insistente sono.

Em uma das paradas do ônibus, eis que sobe no veículo uma senhora baixa, meio gorducha, de cabelos gritantemente vermelhos e roupas que combinavam muito bem: calças amarelo marca-texto e uma camisa azul-marinho com bolotas coloridas.

Não tive como não reparar. Talvez se ela tivesse pendurado uma melancia no pescoço o visual ficasse ligeiramente mais apresentável, mas, em todo o caso, o fato foi que aquela explosão de cores fez-me pensar sobre algumas coisas.

Não, não foi que talvez a pobre mulher não tivesse dinheiro o suficiente para possuir um espelho de corpo inteiro em casa ou em como o mundo poderia ser muito mais esteticamente agradável se fosse possível adquirir um concentrado de Senso de Ridículo em qualquer farmácia.

Lá, sentada num dos últimos bancos azuis do ônibus, observando com ligeiro ar de riso aquela explosão de cores que se materializava na gorducha senhora ridiculamente vestida, pensamentos obscuros sobre a relatividade das coisas começaram a dançar uma ciranda na varanda do meu cérebro.

A vermelhidão do cabelo da senhora, por exemplo.

Será que aquela cor intensa e vívida que eu enxergava com meus míopes e astigmáticos olhos castanhos era a mesma cor que o garoto de boné postado em frente à porta via quando olhava para aquela mulher?

Será que o vermelho que eu vejo é o mesmo vermelho que ele vê, que você vê, que qualquer um vê?

Se uma pessoa, desde que se entende por gente, acostuma-se a dizer que a cor do céu é azul, a cor do céu, para aquela pessoa, será azul, mesmo que o que ela veja seja o que eu chamaria de verde. Estando ela acostumada a chamar o que eu chamaria de verde de azul, o verde, para aquela pessoa, seria azul.

Ou não.

As relatividades e as dependências dos pontos de vista para qualquer situação são um tanto quanto frustrantes, não são?

Digo, até hoje não tenho a certeza absoluta de que aqueles que me cercam existem realmente.

Talvez vocês todos sejam apenas um fruto da minha imaginação.

Talvez eu mesma seja um fruto da minha imaginação.

Como posso ter a certeza de que alguma coisa é realmente alguma coisa, seja lá que alguma coisa essa alguma coisa gostaria de ser, se é da minha percepção que irei me valer ao analisar essa alguma coisa?

O que eu quero dizer – se é que quero mesmo dizer alguma coisa e não simplesmente escrever palavras a esmo numa página em branco do Blogger – é que esse é o tipo de coisa sobre a qual o melhor a se fazer é varrê-la para debaixo do tapete e ir assistir à uma partida de bocha alienígena bebendo vodkas Alkällesiahnas.

Ou não, também.

42.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Da Gaveta do Meu Cérebro

Certa vez abri uma gaveta do meu cérebro e de dentro dela pulou um gato listrado de óculos escuros que fumava um charuto cubano.

Ele olhou para mim com seus olhos que mudavam de cor e disse:

“Ande sempre com a chave! Nunca se sabe quando será preciso trancar a porta.”

Foi então que tudo finalmente fez sentido pra mim: um arco-íris desbotado brilhou num céu de caleidoscópio e eu pude ouvir as guitarras distorcidas dos guardiões de um paraíso que não existe.

Mas aí, no segundo seguinte, quando o silêncio imperou, o tudo se fez nada; o gato sumiu numa nuvem de fumaça e o sentido de todas as coisas do mundo fugiu de mim como as areias de uma ampulheta quebrada.

...

(É. É velho. Quase todos os que frequentam - agora sem meu querido trema - o meu humilde blog já o conheciam. Mas, e daí? Minha Inspiração ainda não voltou da farra do Ano Novo. Deve estar bêbada e perdida em algum lugar psicodélico e isolado da civilização. Se alguém a vir, por favor, entre em contato. E feliz começo de ano para todos.)